Mulheres na Ciência: a participação na produção científica e os obstáculos a serem enfrentados
- Stephanie Fazio
- 10 de nov. de 2019
- 6 min de leitura
Atualizado: 22 de nov. de 2023
Cortes de gastos anunciados pelo governo podem, a longo prazo, comprometer o desenvolvimento científico e tecnológico
11/11/2019
Por Ester Santana, Letícia Remonte, Stephanie Fazio, Thaís Corrêa e Tifany Kimura
SÃO PAULO As mulheres sempre contribuíram com a produção de conhecimentos que impactaram as sociedades ao longo das épocas. No Brasil, muitas delas participaram de importantes movimentos que levaram a avanços na área científica nacional. A cientista Olga Bohomoletz, por exemplo, teve sua atuação profundamente atrelada ao centenário Instituto Butantan, principal produtor de imunobiológicos do Brasil, tornando-se um dos nomes mais respeitados do instituto. Médica e pesquisadora, Olga participou de grupos de discussões que resultaram na criação da Sociedade Brasileira de Toxinologia (SBTx).
Zuleika Picarelli formou-se em Química na Universidade de São Paulo, estudou os efeitos dos hormônios na hipertensão e foi uma das pioneiras na descoberta de como determinados hormônios agem na contração e dilatação dos vasos sanguíneos e na pressão arterial. Já a fisiopatologista e hematologista Eva Maria Kelen foi pioneira no estudo da coagulação sanguínea e chegou a desenvolver, com a ajuda de outros pesquisadores, o primeiro soro antilonômico contra queimaduras de lagartas.
“A história que o Instituto Butantan montou da ciência é muito masculina e branca, essa é a história padrão”, explica a monitora do museu histórico do instituto, Raisa Reis. Buscando modificar esse cenário, o museu passou a desenvolver diversas atividades voltadas ao Dia Internacional das Mulheres para dar notoriedade a contribuição feminina no desenvolvimento da área científica nacional.
Ouça as breves explicações de Raisa Reis sobre o trabalho e história de algumas cientistas do instituto: soundcloud.com/stephanie-fazio-378867125/explicacoes-sobre-as-cientistas-do-instituto-raisa-reis
Mulheres na Trilha
Em 2017, como fruto da ação conjunta da equipe de educadores, surgiu o projeto “Mulheres na Trilha”. De acordo com Isadora Simões, monitora no museu histórico do Instituto Butantan, o museu já realizava uma atividade chamada “Caça ao cientista”, em que os visitantes podiam caçar informações sobre pesquisadores do instituto, homens e mulheres, além das pesquisas que foram desenvolvidas por eles.
“Para o oito de março daquele ano a equipe de educadores teve a ideia de homenagear as mulheres cientistas do Instituto Butantan. Então, foi realizada a trilha das cientistas”, relembra Isadora. A equipe elaborou um material em formato de gif com informações sobre a vida, o trabalho e as contribuições das profissionais que passaram pela instituição.
Projeto Mulheres na Trilha da Ciência - Fotos: Letícia Remonte e Tifany Kimura
No início, o projeto era voltado apenas para os cientistas do Instituto Butantan. Com o passar do tempo, porém, pesquisadores de todo o mundo foram acrescentados à brincadeira. Com base em um levantamento, a equipe montou um mapa mundi interativo trazendo as informações encontradas acerca desses estudiosos. “Desenvolvemos um quiz chamado “Qual cientista você é do Instituto?”, dessa vez com homens e mulheres. Nesse jogo, a pessoa acabava escolhendo um cientista ou outro na hora de responder as perguntas”, explica Isadora.
Monitoras Raisa Reis (à esquerda) e Isadora Simões (à direita) - Fotos: Letícia Remonte
Um passo à frente, outro atrás
Em reconhecimento ao projeto "Mulheres na Ciência", o Museu Histórico do instituto recebeu o Prêmio de Boas Práticas em Ações Educativas. O reconhecimento foi oferecido pelo Comitê de Educação e Ação Cultural (Ceca, sigla em inglês), que integra um dos 31 comitês do Conselho Internacional de Museus (Icom, na sigla em inglês).
“Recebi da própria coordenadora da iniciativa, Adriana Mortara, a informação de que a ação havia sido premiada. O que confirmou a qualidade da linha de atuação que o Museu Histórico do Instituto Butantan vem propondo faz algum tempo, seja nas ações internas ou externas”, explica Suzana Fernandes, diretora do Centro de Memória do Instituto Butantan e pesquisadora científica.
Embora as ações promovidas pelo museu tenham sido premiadas, ganhando visibilidade em diversos portais da internet, por conta do quadro reduzido de funcionários, não existem outros projetos programados para os próximos anos. “Agora, nosso objetivo é conseguir dar continuidade a esse trabalho, ao menos para março do ano que vem”, relata Isadora.
Para não perder o material levantado, os funcionários decidiram manter os gifs criados para o Dia da Mulher na televisão do Museu Histórico, que divide espaço com outras peças de memória. “(A iniciativa) foi interessante, pois algumas pessoas nos param e perguntam sobre quem foram essas mulheres. Por isso, seria importante termos um material mais fixo, com informações adicionais”, sugere a monitora.
Dos números à sala de aula
Dados do relatório Gênero no Cenário Global de Pesquisa (Gender in the Global Research Ladscape) divulgado em junho de 2017 e apresentado pela Elsevier, empresa de informações analíticas que contribui com instituições e profissionais da área de saúde e da ciência, mostraram que a produção científica feminina no Brasil cresceu 11% nos últimos 20 anos. Nesse período, trabalhos científicos assinados por mulheres alcançaram 49% da produção científica nacional.
Apesar do cenário positivo, as mulheres ainda são minoria nas chamadas “Hard Sciences”, ciências duras em tradução literal, que abrangem áreas como Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática. Segundo o levantamento apresentado pela Elsevier, 75% dos trabalhos em áreas como ciências da computação e matemática são realizados por homens.
Professora de biologia na Universidade Presbiteriana Mackenzie, Magda Pechliye coordena o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) em um subprojeto voltado para o desenvolvimento da Biologia. Autora de livros e editora chefe da revista Biodivulgação, ela explica que se interessou pela profissão por achar forte a relação entre educação e ciência. “Na faculdade, fiz iniciação científica sobre o sistema nervoso em que trabalhei com as questões de memória. O que me chamava mais atenção nessas questões era (como ocorria) a aprendizagem”, relata a educadora.
Segundo Magda, para muitas pessoas, o local de trabalho de um cientista não inclui a sala de aula. “A visão que temos do cientista é de alguém misturando elementos, no laboratório, de avental, então, quando você diz que trabalha na área de educação as pessoas acham estranho, elas não enxergam pesquisa nisso”.

Ciência para quem?
As mulheres sempre sofreram com a discriminação e a desigualdade de gênero em várias áreas e a ciência é apenas mais uma delas. De acordo com a pesquisa “Decifrar o código: educação de meninas e mulheres em ciências, tecnologia, engenharia e matemática” (STEM), publicada pela Unesco, em todo o mundo, apenas 35% dos estudantes das ciências duras são mulheres.
“Quando entrei no Butantan, em 2005, as mulheres que trabalhavam nos laboratórios de bancada, na produção, com ciência, tecnologia e inovação, não só eram em menor número, como também estavam, muitas vezes, subordinadas à lideranças masculinas”, relata Suzana Fernandes, diretora do Centro de Memória do Instituto Butantan e pesquisadora científica.
De acordo com Suzana, o maior desafio em se fazer ciência no Brasil é vencer as barreiras sociais e econômicas. Ao ultrapassar esses obstáculos muitas vezes impostos, os estigmas se tornam praticamente irrelevantes. “O preconceito, frente aos nossos interesses e ambições profissionais, é tão sem sentido que fica em segundo plano”, reflete a pesquisadora.
Para a professora Magda, entre as dificuldades enfrentadas por quem é educador e pesquisador está o pouco reconhecimento obtido na área, que conta, inclusive, com uma presença feminina majoritária na sala de aula. “Às vezes me sinto desvalorizada por trabalhar com ciência na área de educação, pois não somos levados a sério”, aponta.
Otimismo
No primeiro semestre deste ano, o país foi tomado por protestos em diversas cidades contra as medidas de contingenciamento anunciadas pelo governo. Em abril, o Ministério da Educação congelou R$ 1,7 bi dos gastos das universidades, comprometendo 24,84% do valor total de R$ 49 bilhões. Segundo o governo, os cortes foram aplicados sobre gastos não obrigatórios, como água, luz, terceirizados, obras, equipamentos e realização de pesquisas.
Em março, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) também provocou reação de entidades científicas e acadêmicas nacionais ao anunciar um bloqueio no valor de R$ 2,1 bilhões nas despesas destinadas ao investimento na área. O corte de 42% representou o menor orçamento da pasta nos últimos 12 anos.
Apesar do Ministério da Educação ter anunciado, no mês de outubro, que irá liberar todo o orçamento bloqueado das universidades federais, a longo prazo, os cortes comprometem o desenvolvimento científico e tecnológico do país. “Com a falta de concursos públicos, por exemplo, estamos sempre em déficit de pessoas qualificadas”, relata Suzana Fernandes.
Mesmo com os cortes de gastos ameaçando “travar” áreas fundamentais da educação e da ciência, as cientistas são otimistas. “A única forma de termos visibilidade é por meio da realização de pesquisa de qualidade e de alcance, o que já acontece no Instituto Butantan, por exemplo, haja vista a quantidade de mulheres que atualmente exercem cargos de gestão e que são líderes de pesquisa”, declara a diretora Suzana.
“Em relação às universidades públicas, o sucateamento vem acontecendo gradualmente, porém, não podemos desanimar e desistir", afirma Magda. O sentimento é compartilhado por quem lida com a educação e ciência todos os dias. “Quando crianças visitam o museu histórico do Instituto Butantan a gente gosta de reforçar: ‘você pode ser cientista", declara a monitora Raisa Reis.
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